O modo de habitar tem trazido impactos para a vida cotidiana. Especialistas propõem reflexão
“Não sabe brincar, não desce pro play”. Play, no caso, é a abreviação de playground, o parquinho infantil que formou gerações de meninos e meninas no pátio de edifícios residenciais Brasil afora. O significado da frase é evidente, o que ela retrata, não. O fato de que esta espécie de provérbio, a ser evocado em diferentes situações cotidianas, tenha nascido do ato de “descer pro play” serve como um símbolo de uma forma de se habitar, em que desde a brincadeira de criança até a ginástica dos adultos é resolvida intramuros. É também revelador do quanto a vida em condomínios verticais está enraizada nas cidades brasileiras.
Parábola à parte, quem cresceu em uma família de classe média entre as décadas de 1980 e 2010 provavelmente conhece bem o assunto. Não à toa. Foi no final dos anos 1970, que os condomínios verticais começaram a surgir nos grandes centros urbanos do país. Hoje, eles são praticamente tudo o que o mercado imobiliário oferece. Em uma reflexão rápida, é difícil imaginar que as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Afinal, com 21 das 50 cidades mais violentas do mundo – segundo ranking de 2015 da ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal – é de se esperar que as pessoas busquem muros para proteção.
No desenho de uma cidade, contudo, nenhuma reflexão pode ser tão rápida, já que tudo que se constrói (ou que se põe abaixo) causa um impacto em níveis diferentes. Assim, é praticamente unanimidade entre urbanistas que se os condomínios fornecem sensação de segurança para seus condôminos, são eles também a causa de cidades cada vez mais desiguais e inseguras. Apesar disso, reforçam que a conclusão não propõe uma cruzada contra quem escolhe viver atrás de muros ou contra o mercado imobiliário, mas uma necessidade de se repensar com urgência um modelo tão naturalizado que, como visto no caso do playground, já deu ensejo até para a criação de axiomas.
Eles geram desigualdade, argumentam os especialistas, porque concentram apenas pessoas de um mesmo poder aquisitivo convivendo entre si. “Essa lógica tem sido responsável por produzir uma sociedade dividida em nichos em que o contato com o outro fica cada vez mais distante e, por isso mesmo, o diálogo cada vez mais difícil”, argumenta o sociólogo Eduardo Marques, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). São também geradores de insegurança, dizem, porque todos os serviços e instalações oferecidas nos condomínios usam muito espaço para se viabilizarem, o que produz quarteirões inteiros murados, onde o pedestre não tem motivo para passar, fazendo das calçadas lugares desertos.
Pegue a publicitária Luiza Oliveira, 28 anos, como exemplo. Ela mora em um conjunto de prédios na zona sul da capital paulista em que são oferecidas aulas de ginástica, yoga, pilates e judô. Além disso, há piscinas, quadras, um mercado para necessidades de última hora e uma minifeira semanal de produtos orgânicos. Os funcionários do condomínio têm um cadastro digital e todo dia colocam o dedo em um leitor ótico para ter acesso às instalações. O carro dos moradores tem um chip eletrônico que é identificado na hora da entrada na garagem, onde seguranças observam a movimentação. A publicitária quase não utiliza as facilidades oferecidas, mas seus pais sim. Ela própria, quando precisa fazer alguma coisa, usa o carro para se deslocar, já que o bairro em que vive é formado basicamente todo por condomínios verticais como o dela.
As facilidades e o esquema de segurança do condomínio da Luiza poderiam supor um local de alto luxo, inacessível para grande parte da população, mas hoje muito da descrição é regra em lançamentos imobiliários com diferentes faixas de preço. “Não se trata de ser contra o mercado imobiliário, mas é importante mostrar que o modelo de moradia vendido hoje, que é baseado no marketing da segurança e no conforto proporcionado pelos serviços oferecidos, está produzindo cidades insustentáveis”, diz o urbanista Vinicius Netto.
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Netto elaborou uma pesquisa que mostra numericamente que ruas com prédios que começam na linha da calçada, não tem afastamento lateral para outras construções e, por fim, abrigam pequenos comércios no térreo são mais usadas por pedestres. Essas características juntas possibilitam o que é chamado de “fachadas ativas”, ou seja, construções que oferecem alguma interação com o passante. Para chegar à conclusão, Netto e outros pesquisadores fizeram milhares de medições do movimento de pedestre, entre 9h e 19h, nas cidades de Porto Alegre, Florianópolis, e Rio de Janeiro.
Ao definir três tipos de modelos de ocupações diferentes – as contínuas, representadas por ruas com fachadas ativas; as híbridas em que há uma mistura de construções; e as isoladas, que podem muito bem ser representadas pelos condomínios verticais com suas torres de moradia e muros –, o estudo de Netto chegou à conclusão que em bairros com características contínuas há uma circulação até três vezes maior de pedestres do que em bairros de desenho isolado. “Só existe espaço público se existe vitalidade deste espaço e, para que isso aconteça, é necessário pensar no tipo de construções que estamos produzindo”, diz.
O condomínio, como tem sido desenhado, ao mesmo tempo em que interrompe o tecido urbano – ao criar grandes quarteirões isolados e murados –, também faz com que as pessoas só andem de carro, reforçando uma característica já cruel das cidades brasileiras que é um modelo de deslocamento voltado para o transporte individual e não coletivo. O fato de o transporte coletivo ser um dos principais problemas estruturais do país reforça tudo isso. Mas e a segurança? “Uma rua com vitalidade, com janelas de prédios e casas coladas à calçada, com comércios abertos, cria uma segurança natural. As pessoas se sentem mais observadas”, diz Netto. Janelas são como olhos, os outros são nossa proteção natural.
“A insegurança é explorada pelo marketing imobiliário para vender o modelo do condomínio. O modelo do condomínio, por sua vez, gera mais insegurança, já que a segurança natural, propiciada pela presença de outros pedestres na rua, é quebrada exatamente pela presença do condomínio. Logo, temos um efeito circular cumulativo”, comenta Netto. O fato deste tipo de moradia ser praticamente a única disponível e o modelo vender bem e custar pouco para as construtoras que constroem projetos muito semelhantes e em alta escala, aliada à questão da falta de planejamento urbano, tem feito com que os condomínios verticais se espalhem por todas as cidades brasileiras.
Adensamento e verticalização
Marques ressalta que o fenômeno não é só brasileiro. Praticamente todos os países da América Latina, América do Norte e Ásia têm passado por um processo semelhante. “Lima, no Peru, por exemplo, é um forte exemplo desse tipo de urbanização”, diz o sociólogo. Uma vista aérea das regiões centrais de São Paulo sugere um verdadeiro paliteiro de construções desconexas. E, de fato, a capital paulista, em uma mistura de legislações, ideias urbanísticas e modelos idealísticos de cidade, é um dos melhores exemplos para se entender quando e por que teve início a proliferação de condomínios verticais.
Em 1973, a construtora Takaoka lançou o empreendimento Ilhas do Sul, um conjunto de torres residenciais em que havia todo tipo de serviços e facilidades disponíveis. Não por acaso, Takaoka foi a mesma construtora responsável por Alphaville, um gigante condomínio horizontal lançado na mesma época nas bordas de São Paulo. Ele seguia em muito os moldes das edge city, os bairros de subúrbio americano, em que as pessoas trabalham no centro e vivem afastadas em lugares mais tranquilos, aprazíveis e seguros. O Ilhas do Sul era, de certo modo, Alphaville sem sair de dentro da cidade. A ideia deste tipo de moradia, contudo, não nasceu espontaneamente, do nada.
Uma das explicações possíveis, segundo Netto, está no imaginário idealístico de um novo modelo de cidade que, no Brasil, é simbolizada pela capital nacional. “O ideal de Brasília é o de uma ‘cidade jardim’ em que morar bem é um dos quesitos mais importantes. Desse modo, ela propõe uma ocupação do solo espraiada, que é o contrário do adensamento populacional existente, por exemplo, em bairros de configuração contínua, em que uma construção é colada à outra e existe uma mistura entre comércio e residência”, diz o urbanista.
O ideal resultou em legislações que propunham uma fuga do adensamento, visto, na época, como sinônimo de insalubridade. A urbanista Nádia Somekh, que estuda a história da verticalização, revela que a lei de ocupação do solo da cidade de São Paulo em 1970 consistia em uma defesa da saúde pública. Defendia-se a tese de que era necessário “evitar uma superconcentração” e que os “prédios deveriam ter uma condição sanitária e de higiene alta”. As leis, como mostra a pesquisa de Somekh, produziram torres residências distantes umas das outras e longe das calçadas. Somado a isso, o fato de que para construir um prédio alto era necessário um terreno grande, fez com que as construtoras começassem a oferecer todo tipo de serviço na venda dos apartamentos, como os já mencionados playgrounds.
A fuga do adensamento trouxe ainda um espraiamento da cidade, que, em tudo, foi interessante para as construtoras que puderam explorar cada vez mais terrenos. Não à toa, Somekh mostra que apesar dos 28 mil edifícios de apartamentos de São Paulo, a cidade tem uma densidade relativamente baixa. Apesar do que uma primeira impressão pode passar, um quarteirão ocupado com sobrados pode ser mais denso do que um quarteirão com duas torres residenciais. “São uma série de contribuições que somadas desenvolveram esse modelo de moradia”, diz Netto. É a questão da segurança, mas também a do adensamento, do tipo de transporte escolhido como preferencial na cidade e da busca de um modo de via mais bucólico. Ele completa: “Ninguém diz que não se vive bem nestes locais, mas habitabilidade não pode ser a única questão na formação de uma cidade”.
Cidades não são construções monolíticas. Muito pelo contrário, cidades são vivas e sujeitas a modificações constantes. “Em São Paulo, por exemplo, começam a surgir incorporadoras que tentam trabalhar mais com o conceito de rua viva, que constroem prédios sem muros e menos padronizados”, diz Marques. O Plano Diretor recentemente aprovado na capital paulista, ele lembra, é outro ponto que, ao incentivar construções com fachadas ativas e propor uma volta às ruas da cidade, pode trazer mudanças nos próximos anos. Além disso, há um movimento claro da sociedade civil por reocupação de espaços públicos, expresso, por exemplo, em hortas comunitárias e a opção pelo uso da bicicleta. “Hoje, os prédios não ajudam a construir a cidade, são, na verdade barreiras para as pessoas e seus encontros, mas isso sempre pode mudar”.
Fonte: El País Brasil